quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Karl Marx: fetichismo e alienação

O fetichismo da mercadoria, descrito no primeiro capítulo da obra O capital, de Karl Marx, revela um mundo em que as relações sociais ocorrem por meio das coisas; as coisas detém o poder de estabelecer as relações sociais, e os homens estabelecem relações materiais. A partir dessa forma de ser das relações humanas no sistema capitalista, o mundo da mercadoria adquire proporções enormes, o processo de expansão do capital conquista uma impressionante força, impulsionado pela supressão das distâncias e do tempo.

Com a universalização da produção de mercadorias, as relações sociais entre os produtores passam a ser mascaradas pelas relações de troca entre as diferentes mercadorias. Assim, as relações sociais entre as pessoas aparecem como relações sociais entre coisas: “A teoria marxiana conduz à desmistificação do fetichismo da mercadoria e do capital. Desvenda-se o caráter alienado de um mundo em que as coisas se movem como pessoas, e as pessoas são dominadas pelas coisas que elas próprias criam. Durante o processo de produção, a mercadoria ainda é matéria que o produtor domina transforma em objeto útil. Uma vez posta à venda no processo de circulação, a situação se inverte: o objeto domina o produtor. O criador perde o controle sobre sua criação, e o destino dele passa a depender do movimento das coisas, que assumem poderes enigmáticos. Enquanto as coisas são animizadas e personificadas, o produtor se coisifica. Os homens vivem, então, num mundo de mercadorias, um mundo de fetiches.

Mas o fetichismo da mercadoria se prolonga e amplifica no fetichismo do capital”.


MARX, K. O Capital. São Paulo: Nova Cultura, 1996.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Desiguais na vida e na morte

JURANDIR FREIRE COSTA
ESPECIAL PARA A FOLHA

A morte de Ayrton Senna comoveu o país. O desalento foi geral. Independente do "big carnival" da mídia, todos perguntavam o que Senna significava para milhões de brasileiros. Por que a perda parecia tão grande? O que ia embora com ele?

Dias depois, uma mulher morreu atropelada na avenida das Américas, Barra da Tijuca, Rio de Janeiro. Ficou estendida na estrada por duas horas. Como um "vira-lata", disse um jornalista horrorizado com a cena! Neste meio tempo, os carros passaram por cima do corpo, esmagando-o de tal modo que a identificação só foi possível pelas impressões digitais. Chamava-se Rosilene de Almeida, tinha 38 anos, estava grávida e era empregada doméstica.

Efeito paroxístico do apartheid simbólico que fabricamos, pode-se dizer. De um lado, o sucesso, o dinheiro, a excelência profissional, enfim, tudo que a maioria acha que deu certo e deveria ser a cara do Brasil; do outro, a desqualificação, o anonimato, a pobreza e a promessa, na barriga, de mais uma vida severina.

O brasileiro quer ser visto como sócio do primeiro clube e não do segundo. Senna era um sonho nacional, a imagem mesma da chamada classe social "vencedora"; Rosilene era "o que só se é quando nada mais se pode ser", e que, portanto, pode deixar de existir sem fazer falta. Luto e tristeza por um; desprezo e indiferença por outro. Duas vidas brasileiras sem denominador comum, exceto a desigualdade que as separava, na vida como na morte.

Penso que esta interpretação é correta mas não esgota o sentido dos acontecimentos. Valor diferencial dos indivíduos, segundo a hierarquia de classe, sempre existiu. A vida dos ricos e poderosos sempre foi tida como "mais vida" do que a dos miseráveis. A questão é a ferocidade com que isto, agora, se apresenta. As mortes de Senna e Rosilene mostram, além da divisão social de privilégios, a progressiva privatização ou particularização dos ideais morais.

A insistência em tornar Senna um herói nacional é a contrapartida do absurdo descaso com que tratamos a vida dos mais humildes. O que nele era admirável pertencia à esfera das virtudes privadas. Virtudes perfeitamente conciliáveis com as virtudes públicas, mas que não podem vir a substituí-las, porquanto pessoais e intransferíveis. Talento e vocação para habilidades específicas não se aprende no colégio. Todos podemos ser bons ou excelentes cidadãos; só alguns podem ser bons padeiros, professores, poetas ou desportistas. Um país obrigado a ter num grande corredor de automóveis o motivo único do orgulho nacional é um pobre e triste país.

O problema –fique bem claro!– não é discutir o incontestável mérito de Senna. O problema é saber como pessoas que provavelmente choraram sua morte foram capazes, pouco depois, de esmagar uma mulher como quem pisa numa barata! Cada dia mais, somos levados a crer que "humano como nós" são apenas aqueles com nossos hábitos de consumo, nossos estilos paroquiais de vida, nossas características físicas, nossas preferências sexuais etc.

Estamos nos convertendo a uma sociedade de "minorias" que discriminam ou são discriminadas, mas que se mostram igualmente incapazes de entender que um mundo humano, como o que conhecemos, só pode existir enquanto durar a ideia de "Homem". Além de "unidimensionais", como dizia Marcuse, estamos nos tornando "parciais e parcializados" na maneira como construímos nossa identidade.

Já não nos identificamos como seres morais, cujos semelhantes são todos aqueles capazes de falarem e distinguirem o bem do mal. Humanos são os que ostentam os mesmos objetos que possuímos; que aspiram ou alcançam o sucesso mundano que nos deixa em transe ou que exibem as marcas corpóreas que temos ou queremos ter. Os outros nada são.

A honra que coube a Senna era justa e legitimamente devida. Mas torná-lo um "ideal" de "identidade nacional", como muitos pretenderam, é fazer de sua memória caricatura de nossa incompetência cívica e humana. No nível da cidadania, a excelência é outra. É saber como impedir que outras "Rosilenes" sejam trituradas como lixo no asfalto, pelos possíveis amantes de corrida de automóveis.

É esse o "x" do problema: mostrar que qualquer vida, pobre ou rica, famosa ou anônima, deve ser respeitada como um bem em si. O mais é exploração comercial inescrupulosa da vida e da morte dos melhores e mais honrados.

Fonte: Folha de S. Paulo publicado em 25/05/2004.